Desde o final de 2020 tenho mantido como interesse pessoal de pesquisa o período que vai do século I a. C. ao século IX d. C. De modo geral, este recorte temporal engloba o que se costuma chamar de Antiguidade tardia (até o século VI/VII) e Alta Idade Média (tradicionalmente, até o século X). Naquela altura, mantinha uma curiosidade bastante vaga em conhecer as fontes e fronteiras do pensamento de Santo Agostinho, isto é, o estoicismo romano e o neoplatonismo pagão. Comecei, conforme a recomendação enfática de um amigo, com “A Filosofia na Idade Média”, de Étienne Gilson, e a “História da Filosofia Cristã”, de Philotheus Boehner juntamente com o mesmo Gilson. Antes, já havia lido alguns clássicos que tocam o pensamento patrístico, como “O espírito da filosofia medieval”, mas cuja orientação se voltava ao medievo latino - esta, alías, é a limitação da maioria das obras sobre o assunto publicadas em português. Apesar da riqueza da investigação gilsoniana, não me dei por satisfeito e passei a buscar alguma bibliografia mais ampla e atualizada.
A primeira referência contemporânea que encontrei foi a bastante completa “História da Filosofia Patrística”, de Claudio Moreschini. A partir dele criei coragem para ler Irineu, Orígenes, Clemente de Alexandria etc. direto da fonte. Contudo, sempre tropeçava na filosofia pagã do período. Para se ter uma dimensão do problema, há autores cujas obras se perderam e só conhecemos pelas referências feitas nas obras de alguns dos Padres. As Stromata e a Praeparatio Evangelica estão cheias disso. Sendo assim, passei às fontes pagãs. Nessa época, diferentemente das divisões ascépticas do nosso tempo, não havia uma diferenciação clara entre literatura, filosofia e teologia. Lê-se, indistintamente, Homero e Orfeu com a mesma validade com que se lê Platão ou Epicuro. Este fato dificulta enormemente qualquer pesquisa, porque amplia consideravelmente o número de fontes a serem consideradas. Da minha parte, releguei por ora aquilo que escapasse do fio ideal que estou seguindo. Talvez essa liberdade interior seja útil para mais algum caso. Ao contrário do que os historiadores positivistas sugerem, nenhum mortal é capaz de esgotar o que quer que seja, muito menos toda uma longa passada do espírito humano em um período tão plural e complexo quanto o primeiro milênio. Seja ou não desculpa para a minha preguiça, foquei meus esforços na tradição platônica.
Atualmente, quando se fala em platonismo, o que nos vem à mente são os diálogos platônicos; para aqueles um pouco mais versados nas teorias contemporâneas, pode ser que a memória sugira a tese das doutrinas não-escritas, popularizada e muito bem argumentada por Giovanni Reale. No entanto, a história das ideias traz consigo um conceito muito mais elástico de platonismo. Como diz Werner Beierwaltes, são platônicos os pensadores que satisfazem os três pontos seguintes: contato direto com as fontes platônicas, certa semelhança de intenção com aquilo que historicamente se constituiu como tradição platônica e a defesa de teses comuns ao lastro teórico conquistado pela tradição. Deste modo, o platonismo não está restrito à consideração dos Diálogos, mas abarca toda glossa, apropriação ou menção ao seu autor. Além disso, também é essencial ressaltar que cada época tem um Platão à sua medida: o cético da primeira Academia; o místico da Antiguidade Tardia; o cosmólogo da Idade Média; o metafísco do Renascimento; o corruptor da Reforma Protestante; o esotérico da Primeira Modernidade; o idealista da Modernidade Germânica; o político da nossa defraudada época. A consideração dessa pluralidade de transmutações nos permite entrever as razões que levaram a Patrística a batizar Platão. Mais do que o sistema de um autor, o platonismo é um repertório terminológico, moral e metafísico que se adequa às intenções de quem ousa tomá-lo como seu - o mesmo pode ser dito de outras grandes tradições que surgiram ao longos dos milhares de anos que formam a história das nossas ideias, como o aristotelismo, o estoicismo, o agostinismo, o tomismo…
Para identificar as principais ideias em jogo, busquei compreender o medioplatonismo, o neoplatonismo inicial de Plotino e o neoplatonismo tardio de Proclo. Nesta tarefa fui sumamente ajudado pela “História da filosofia grega e romana”, de Reale; a “Storia del pensiero cristiano tardo-antico”, de Moreschini; o Plato Christianus, de Endre von Ivanka; os muitos livros de Werner Beierwaltes (as traduções, com exceção da edição francesa já linkada, são muito difíceis de encontrar) e de Stephen Gersh. Em matéria de edições, sempre que possível uso as providas pela extraordinária coleção italiana “Il pensiero occidentale”. Sei que há alguma coisa esparsa em inglês, principalmente sob os cuidados de Lloyd P. Gerson. No que diz respeito ao pensamento especificamente cristão, com um foco mais teológico, são fontes incontornáveis os livros de Jean Danielou - particularmente sua trilogia dedicada aos primeiros séculos - e os estudos do Card. John Henry Newman. Sob a ótica da histografia social e cultural, Peter Brown é indispensável. Há, também, uma coletânea de textos do período patrístico organizada por Cambridge que pode servir como programa de leitura inicial. Para aqueles que nutrem apenas uma curiosidade muito vaga nos Santos Padres, vale a pena ler as breves catequeses de Bento XVI. Li alguns volumes da coleção patrística publicada pela Paulus, que pode ser uma opção para alguns, mas não gostei da fluência dos textos. Enquanto leitor, prefiro mil vezes mais as edições da Ciudad Nueva ou do seu braço italiano, Città Nuova; também aprecio as edições da CUA Press, em inglês; para os que leem francês, há edições de ponta na coleção “Sources Chrétiennes”.
Creio que o esforço despendido no estudo da Filosofia Tardo-antiga e na Patrística não deixará de dar bons frutos. Na minha opinião, não há período histórico que se assemelhe mais ao nosso. Precisamos aprender daqueles gigantes a transformar o colapso da nossa civilização em uma rica oportunidade para retraçar os rotas para o futuro. Uma lição que aprendi com eles é que um pensamento rigoroso não precisa abrir mão da audácia e da liberdade criativa. De certo modo, toda reflexão é “de”, “com” e “para”, isto é, parte da alma de uma pessoa historicamente situada com os instrumentos e mestres à disposição para um fim autodeterminado. Neste sentido, a reelaboração das tradições é uma necessidade vital da sua recepção. Não existe, em sentido estrito, algo como uma arqueologia das ideias. Temos, na verdade, um cultivo indefinidademente amplo e fértil do ideário conservado por uma tradição.
Boas festas a todos!
Até a próxima,
Gabriel de Vitto
O valor desse texto é incalculável! Obrigado, mestre.