Ao preparar uma disciplina sobre o sistema hegeliano - meu caso, neste momento - o caminho tradicional é apontar para a relação de Hegel com o idealismo imediatamente precedente e mostrar suas relações com o surgimento da esquerda revolucionária, mas pouco se fala sobre o amor que Hegel nutria pela tradição. Inspirado pela revivescência da filologia clássica que ocorria na Alemanha daqueles anos, leu avidamente, no original, as obras dos Pré-Socráticos, Platão, Aristóteles e Plotino. Além destes, mergulhou no mundo do neoplatonismo tardio e medieval. São evidentes as constantes referências ao pensamento de Proclo e Meister Eckhart, por exemplo. Aliás, tamanho era o seu amor e erudição à tradição, que fundou a disciplina História da Filosofia, dando a ela um lugar central em seu sistema.
Creio que olhar para essas coisas nos leva além da mera questão historiográfica. Na verdade, nos coloca diante de um problema central. Poderia formulá-lo assim: seria Hegel, o filósofo moderno arquetípico, um arcaísta? Mais: o grande filósofo clássico da Modernidade? Eu diria que sim. Um clássico neoplatônico - precisamos nos lembrar que os “clássicos” não se resumem a Aristóteles e S. Tomás - que viu na hierarquia o maior dos valores. Segundo a lapidar intuição de Werner Beierwaltes, Hegel uniu o princípio de imanência kantiano à metafísica do Uno. Cosmos e consciência se tornam polos tensionalmente opostos de um único Logos universal. Isto, por sua vez, nos dá um trunfo muito importante.
Assim como os medievais, Hegel escolheu como matéria-prima de sua filosofia o neoplatonismo. Sendo assim, num possível diálogo entre a Modernidade e a Filosofia cristã - o que sempre exige bases compartilhadas, para que interlocução não caia no vazio - está na frente de Descartes, Leibniz ou Kant. Cornelio Fabro, o maior tomista dos últimos séculos, viu isso, gastando décadas de estudo debruçado sobre o corpus hegeliano. O maior dos problemas da filosofia de hoje, sua doença fatal, é a incapacidade de reconhecer que relações desse tipo são essenciais. Quando o filósofo se fecha na Escola ou na Academia, está morto.
A filosofia só é vida na exata medida em que é atividade vital ordenada, organismo. Se não, se transforma numa frenética luta pela vida, atividade febril, como no progressismo, ou na morte por inanição dos conservadores. Vejam com atenção: quem são os grandes filósofos vivos? MacIntyre, o católico-aristotélico-marxista. Jean-Luc Marion, o derridiano-areopagítico. Josef Seifert, o fenomenólogo-tomista-escotista. Há muitos outros exemplos. São gente de outra estirpe, outra era, na qual a Babel do formalismo e do irracionalismo ainda não havia se imposto. Por sinal, este ponto é importante. Mesmo que a Babel bíblica nos tenha tirado o idioma comum, não nos tirou a linguagem da razão. A racionalidade permite ao ser humano transcender o tempo e espaço, os idiomas e as culturas. Todos falavam a lingua da razão. Hoje, pelo contrário, poucos a reconhecem. A razão tornou-se arcana. Neste sentido, aliás, dizia Hegel: “A Filosofia [o exercício mais excelente da razão humana] é a consideração esotérica de Deus [Razão por excelência]”.
A meu ver, este “esoterismo” não é essencial. Deve-se, exclusivamente, ao colapso da própria razão. Poderíamos dizer que é um Estado de Exceção quase permenente, terror da consciência moderna. A polaridade entre o ceticismo exotérico e a razão pura esotérica deve ser transcendida pela Revelação da “puríssima razão”:
A puríssima razão, no sentido moral-religioso, significa uma razão humana; isto é, uma atividade intelectual de uma mente moralmente pura. A puríssima razão, neste sentido, refere-se à filosofia de um intelecto que ama a verdade e se abre radical e profundamente a cada realidade. Estamos falando de uma razão que é realmente motivada pelo princípio diligere veritatem omnem et in omnibus e que não sacrifica nenhuma parte dos dados [da realidade] a uma construção que é produzida pela nossa vontade de que as coisas sejam diferentes do que são. Uma razão puríssima não é uma razão violenta, não é uma filosofia com o martelo, tal como Friedrich Nietzsche chamou a sua própria filosofia. Este significado do termo razão pura é o que Platão tem em mente quando insiste na necessidade da catarse ('purificação') para a filosofia: na necessidade de uma purificação da alma para ser capaz da verdadeira filosofia, de uma filosofia que Cícero e os juristas romanos chegaram a chamar vera philosophia non afectada (“filosofia verdadeira e não fictícia”). Esta razão puríssima é uma razão purificada pelo amor à verdade e por todas as virtudes que purificam o intelecto humano para ser mais capaz de conheça a verdade.
Josef Seifert, Filosofía cristiana y purísima razón
Enfim, caros amigos, encerro por aqui as digressões da vez.
Um abraço a todos e até a próxima!
Gabriel,excelente texto.
Obrigado.