Desde o surgimento do livro manuscrito, ainda na Antiguidade, tornou-se comum a prática de breves comentários nas margens por leitores e escribas. Esses comentários eram chamados de escólios, algo como notas de leitura destinadas a facilitar a compreensão dos futuros leitores. Alguns escoliastas, como Máximo Confessor, se tornaram tão célebres que tiveram seus comentários agregados às futuras edições dos originais. De certo modo, penso que todo leitor deve ser um escoliasta. Longe de pretender esgotar o assunto, gostaria de refletir um pouco sobre ele.
Muito se fala atualmente sobre níveis de leitura, métodos para leitura rápida ou atenta, produtividade na leitura etc. Ao meu ver, cada uma dessas coisas perde relevância quando a antiga postura do escoliasta é colocada em cena. Para quem lê dessa forma, importa, sobretudo, ver o texto como um organismo de ideias relacionadas e orientadas a um mesmo “fim último”, segundo a intenção de seu autor, no qual as finalidades secundárias têm função auxiliar. Neste sentido, conceitos, fórmulas ou sentenças obscuras são esclarecidas a partir da prioridade dada ao sentido global do texto pela intentio autoris.
Ao mesmo tempo, ler como escoliasta não implica ser um comentador daquilo que se lê – não no sentido moderno, pelo menos. Mas ser capaz de reconstruir, esclarecer e corrigir, quando necessário, o argumento proposto na obra. É preciso torná-lo próprio. De fato, podem dizer que isso é muito vago, porém, na verdade, muitas vezes soa vago o que apenas é simples. Ao ler algo complexo, nossa tendência é fragmentar o texto dividindo-o em parágrafos, tópicos ou pontos de interesse antes mesmo de compreendê-lo. Seguindo a lógica dos escoliastas, nada mais fatal. Reconstruindo o “fazer” desses antigos, poderíamos dizer que sempre compreendemos o texto segundo a unidade causal modelada pela inteligência do autor. O todo precede, necessariamente, as partes.
Encontramos uma excelente pista no primeiro capítulo do primeiro livro da Suma contra os gentios, Santo Tomás de Aquino, na qual fala do Intelecto Incriado: sapientis est ordinare (Contra Gentiles, lib. 1 cap. 1 n. 2) e sapientis est causas altissimas considerare (Contra Gentiles, lib. 1 cap. 1 n. 3). Assumamos, então, com a tradição da filosofia grega e cristã, que há uma relação analógica entre o intelecto humano e o Intelecto Divino. O que isso nos indica? Ora, o óbvio: ler os sábios é captar a ordem das “causas altíssimas” – não tão altas, às vezes – que eles plasmaram em seu discurso. Neste caso, escoliar um texto é explicitar o ritmo da inteligência do autor a fim de torná-lo próprio e, simultaneamente, comunicável.
Ao mesmo tempo, convém lembrar que a inteligência que confecciona os textos sapienciais e científicos é limitada. Contrariamente ao que acontece com as Sagradas Escrituras, na qual o autor primário é o próprio Intelecto Divino, o conteúdo de um texto oriundo da mente humana começa e acaba. Há, aqui, uma postura muito diferente daquela defendida pela hermenêutica moderna ou contemporânea. Não há, em suma, nenhum ponto arquimédico absoluto a partir do qual a interpretação deve ser metodologicamente reconstituída, nem a possibilidade de atualizações virtualmente infinitas. Trata-se de um caminho já traçado e percorrido, de modo que cada escólio deve representar um sinalizador.
Espero que tenha sido útil.
Um abração,
Gabriel de Vitto.